Tentando organizar um raciocínio
Tudo começa com o Russell Davies:
Digital transformation of your organisation is inevitable. Your organisation will either become digital or be replaced.
That means that marketing/comms will have less or none of the budget, influence and power. And that services/product will have more or all of the budget, influence and power.
Como ele diz, é óbvio e inevitável. E explica muita coisa acontecendo na publicidade/marketing mundo afora. Mas para continuar com ele, em um post uns dias mais tarde:
When thinking about large organisations and their relationships to ‘digital’ a couple of concepts from other fields always pop into my head.
(…)
Learned helplessness is the first. (…) The second is wilful blindness, an idea I first came across during the Enron trial, (…) i.e. people seek to avoid knowing the obvious, so they don’t get the blame for it.
Que combina bastante com a verdade #9 que programadores sabem e a maioria das pessoas, não:
Just as you’re usually not impressed when we brag about how much we know about computers, we’re not impressed when you brag about how little you know about them.
E me faz pensar em 90% dos atendimentos de publicidade com que já tive o desprazer de trabalhar. Claro, apesar da prevalência, não é exclusividade deles. Com vocês, um dos maiores redatores que já surgiu nesse país:
A geração atual só se interessa pelos penduricalhos da profissão: campanhas mobile, ações para três gatos pingados assistirem, aplicativos e campanhas bom-mocistas, do tipo “ salvem as baleias”. Só que nada disso movimenta a economia, nada disso nos torna importantes para o anunciante. E quase nada disso é realmente propaganda. São, no máximos, gatilhos deflagradores para ações de P.R.
O que, enfim, me leva ao ponto que realmente me interessa nessa história toda: eu concordo com o diagnóstico, ainda que discorde totalmente do tratamento. Permitam-me, vocês e o Mohallem, me ater a essa parte mais um pouco.
Com o fim do SxSW, em Austin, os publicitários começam a virar toda sua atenção para o litoral francês e o festival de Cannes. E a primeira fase desse ciclo anual já começou, com os artigos que explicam por que essa fixação com prêmios é um exemplo da falta de relevância da publicidade atual.
If you’ve ever wondered why people hate advertising awards – it’s because people hate advertising. Let’s not delude ourselves.
Apesar do timing, tanto da publicação quanto dos compartilhamentos nas redes sociais, como dito pelo Russell Davies ali em cima, trata-se do óbvio e inevitável. É o consumidor fazendo o dinheiro e o poder fluirem do marketing para o produto.
Quer dizer que, em vez de ficar reclamando do termo growth hacker — que é meio ridículo, de fato, mas necessário diante da cegueira proposital —, melhor seria entender que tudo descrito nesse post é, ao contrário do que diz o título, o que pode-se chamar de marketing de verdade nos dias de hoje.
Ora, mas eu não disse que concordava com o diagnóstico? Sim, e pra explicar isso apelo pro Russell Davies uma última vez, ao falar das iniciativas da BBC nessa famosa transição:
If you really work at it, you can always make the internet fit the business model you understand.
I’m not saying this to carp. (Except a bit.) I’m saying this because the biggest challenge in Digital Transformation is not in the initial refocusing on a new organising principle, it’s in resisting the steady drift back to the old one.
No próprio post ele cita o caso da W+K com a Old Spice, que essencialmente descobriu um jeito de fazer “anúncios em vídeo na Internet”, do mesmo jeito que a BBC descobriu um jeito de “fazer televisão na Internet”. O que termina a gigantesca tangente do raciocínio e nos traz de volta à publicidade, aos prêmios e ao diagnóstico do Mohallem.
Na minha humilde, enviesada e obviamente irrelevante opinião, o que leva a atual geração a só se interessar pelos penduricalhos é o fato de ouvirem e acreditarem que “o dinheiro saiu do marketing e foi para o produto” mas, diante disso, procurarem formas de aplicar seu modelo de negócio — aquele que faz as coisas pra ganhar prêmios — a isso, e não em como mudar seu modelo de negócio.
Qual a diferença? Permitam-me roubar o comentário de um publicitário quanto àquele post falando mal dos prêmios, depois de citar alguns exemplos de ações que o Mohallem provavelmente chamaria de penduricalhos:
Esses trampos foram feitos em prol de uma premiação? Talvez. Mas invariavelmente podem ajudar alguém. Podem até virar uma startup (where the REAL innovation is, segundo o cara do texto).
Citei dois exemplos. Mas existem milhares. E com certeza muitos publicitários conscientes dos seus papeis e tentando hackear o sistema. E alguns outros ainda fazendo isso apenas pelos prêmios.
No início do seu comentário ele diz que “acho engraçado como esse tipo de artigo geralmente é escrito por alguém que não participou do processo de ganhar prêmios. E nem estou falando em ganhar, mas apenas participar do processo.” Assim, em vez de usar os exemplos que ele próprio citou, eu vou usar não só o exemplo de um trabalho do qual participei, mas do qual me orgulho bastante e que ganhou alguns prêmios: Mil Casmurros.
Até algum tempo atrás, eu poderia ter colocado um link para o site original do projeto em vez de um videocase. E aí começa o problema. Além de incentivar pessoas que tinham deixado de consumir televisão a se interessar por e assistir a uma série da Globo, Mil Casmurros também tinha um objetivo secundário de incentivar as pessoas a lerem a obra de Machado de Assis, de preferência sem o ranço dos tempos de colégio. Se esse fosse o objetivo primário do projeto, se a ideia fosse criar um produto e não uma propaganda, será que o site não estaria no ar? Será que não teria evoluido e sido aplicado para outras obras? Talvez sido licenciado para uso por governos, colégios e iniciativas de educação em geral?
Como se tratava de uma campanha publicitária, porém, assim que seu objetivo estava alcançado — os mil trechos foram preenchidos, a série foi um sucesso, o projeto ganhou vários prêmios —, ninguém mais precisava se preocupar com aquilo. Pior, quando alguns anos depois uma agência espanhola inscreveu um projeto semelhante em Cannes em cima de Don Quixote — não consegui encontrar link para o case, se alguém souber, deixe aí nos comentários —, logo vários publicitários vieram comentar da “chupação”, “plágio” etc.
(Importante notar que todos aqueles que fizeram parte de Mil Casmurros com quem conversei acharam ótimo o fato de mais gente ter usado um sistema similar para incentivar a leitura de algum livro. O case dos espanhóis, claro, não levou nem shortlist. Mas a reação normal do meio é de que copiar ideia é anátema, o que é mais um exemplo do quanto a “ideia” é mais importante do que o resultado.)
Tá, e daí? E daí que existe uma diferença muito grande entre fazer algo que “pode ajudar alguém, pode até virar uma startup” se a única obrigação é que esse algo renda um prêmio publicitário. Entre fazer um app que só precisa render um videocase bacana, e um app que efetivamente precise trazer resultados, em que seja preciso melhorar o produto, testar o que funciona e o que não funciona e assim por diante.
Lembram do texto do Mohallem? Outra coisa que ele diz é repetida por quase todo publicitário que conheço, pelo menos em conversas francas sem medo de como o mercado irá interpretá-lo:
O mercado anda chatíssimo e deturpado. (…) Além de muita gente boa que merece ter chegado onde chegou, vejo picaretas se dando muito bem, agências ruins tomando clientes das boas, tem de tudo nesse meio.
Pois, o diagnóstico está corretíssimo. Enquanto a solução continuar sendo querer aplicar os paradigmas antigos ao digital, no entanto, a coisa só vai ficar mais chata e deturpada.
(Todas as fotos tiradas do Flickr e publicadas sob licença Creative Commons by-nc-nd 2.0. O link para o original está nas próprias fotos e o nome dos autores no alt text)
posted: 15 March 22
under: Uncategorized